Às oito horas da manhã de um dia como qualquer outro, chego no ponto de ônibus com o mesmo cansaço e, provavelmente, a mesma cara de todos os dias. Não reclamo, mas também não agradeço. Não é ingratidão, é falta de reflexão. Parar pra pensar é pra quando dá tempo, deixou de ser uma ação natural para se tornar uma obrigação com horário marcado. Uma visita ao dentista.
Às oito horas da manhã de um dia como qualquer outro, um garoto de seus quinze anos – menos, provavelmente – está correndo atrás de um ônibus que o deixe entrar. Qualquer ônibus, qualquer direção. Para ele, isso é tão indiferente quanto o que ele vai conseguir vender lá dentro. Tão indiferente quanto o futuro dele. Tão indiferente quanto o que as pessoas pensam do seu jeito roto, do seu aparente retardamento e da sua condição social e financeira inferior.
Às oito horas da manhã de um dia como qualquer outro eu e ele nos encontramos. Ele nem percebe minha existência mas, por incrível que pareça, eu percebo a dele. Os papéis se inverteram, eu me sinto o deslocado. Sou um estranho, um insignificante. Só cheguei ao encontro não marcado com ele porque meu pai me deu uma carona até aquele ponto, razoavelmente distante da nossa casa. Só estou indo trabalhar no lugar que sempre quis porque tive educação, alimentação, saúde, apoio, escola particular, pai, mãe, casa, segurança. Ele chegou ali porque acordou cedo, porque se não vender amendoim e bala não vai ter o que comer, e se tiver pai e mãe esperando em casa vai tomar esporro – ou surra, vai saber – porque não ajudou a colocar o feijão na mesa, e vai escutar de longe o lamento de seus pais por terem um filho deficiente e não um jogador de futebol, pagodeiro ou avião do tráfico local.
As discrepâncias da vida são constrangedoras pra quem desvia o olhar para elas, e não delas. O peso de uma vitória admirada pela sociedade não se compara à vitória de quem consegue sobreviver em um mundo que espera enterrar o mais rápido possível os que não nasceram para disputar uma vaga de líder. Os milhões de olhos à espreita dos Josés e Marias são o Big Brother da vida real. Vacilou, é eliminado. Está for a do jogo, e pode chorar à vontade que seu lugar é ao lado dos perdedores. E de lá você não sai.
O garoto que vende bala de ônibus em ônibus às oito da manhã de um dia como qualquer outro é um deles. Sem jeito com suas limitações, cambaleando entre o orelhão e o meio-fio, procura onde deixar suas coisas. Busca um pouco do descanso que a vida lhe deve, e que unca vai receber. Na sua situação, só descansa morto. O que não faria diferença para os que estão ali e passam por ele como se fosse parte da paisagem. Ele é um enfeite feio que acabou no lugar errado, mas que daqui a pouco vai ser retirado para seu lugar de origem. De onde esperam que nunca saia mais.
Como eu notei e senti vergonha pela situação, sou um deslocado. Nada de indiferença, nada de salvamento. Estou compadecido da situação, que mais cedo ou mais tarde vai se descolar da minha retina e fazer parte de um passado distante, onde eu fazia parte da minoria que vislumbrava dias melhores. Utopia é peça de museu, e o destino do homem é ser como os outros: cego.
Enquanto enxergar a luz no fim do túnel, quero nunca me abater. Se existe um Deus no céu, é para Ele que peço desesperadamente para não me deixar endurecer, porque essa é a arma de quem manda. E quem lidera guia a massa para o abate, sem dó ou consideração. Não posso me deixar levar pela maioria, no meu dicionário ainda existe piedade, comiseração, empatia, esperança, perseverança. Meu pai dos burros é mais inteligente que o dos outros. Ou, ao menos, mais humano. Que eu tenha forças para seguir sempre em frente quando tentam me puxar para trás, para subir enquanto procuram me afundar, e para falar enquanto atitudes frias não congelam minha língua e meu coração. Se eu nunca mais encontrar aquele menino que representa o tempo em que vivemos, pelo menos deixo aqui a homenagem a quem fez acordar meu lado inconformista.
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